Fluxo de Pensamento: O ator e sua solução pessoal
Neste ensaio, Helena Varvaki reflete sobre a arte do ator, costurando memórias e processos criativos

Existe um texto muito bonito de Mário de Andrade chamado “O Artista e o Artesão”. Nesse texto, de 1938, Mário afirma que, na sua concepção, a feitura de uma obra de arte é composta por três manifestações: o artesanato, a virtuosidade e a solução pessoal. No meu livro, “Ator: um artesão de si mesmo”, eu faço uma relação entre esses aspectos e o trabalho do ator.
Aqui, entretanto, quero me ater à reflexão do que pode ser a Solução Pessoal na arte do ator. O que faz com que dois atores jamais façam da mesma maneira um personagem? E, também, quando dois atores fazem de maneiras parecidas, será que essa similaridade é fruto de algo que eles estão evitando? Quais são os caminhos que produzem singularidades na criação de uma atriz ou ator? Perguntas e história movem os processos criativos e o pensamento. Vou fazer um recuo temporal e te contar uma história como um caminho para seguir pensando.
Na minha juventude, ainda estudante de teatro, em Atenas, eu pulava o muro de um teatro ao ar livre – o Teatro Lycabettus – para estudar meus textos de tragédia grega. Depois de pular esse muro, eu tinha a sensação de que entrava em um mundo onde Antígona e Kassandra eram a minha realidade. Algum tempo depois, os vigias do teatro, que já me conheciam, sabiam que o único risco que corriam era de ver uma jovem atuando para as nuvens no céu e para as arquibancadas vazias. Eles, então, passaram a abrir aquele espaço para eu entrar. O espaço aberto para que a arte acontecesse ali com a vida. Talvez lá na Grécia, em 1980, com 17 anos, eu tenha começado a entender que o teatro é um lugar onde a vida acontece.
E, exatamente, um lugar onde a vida acontece é o nome que dei a um monólogo que criei a dramaturgia e atuo, e que foi dirigido por Miwa Yanagizawa. Ele conta a história da Maria, uma mulher que fica perplexa por estar prestes a fazer 60 anos. Nessa peça, construí a ficção a partir de histórias pessoais e histórias que colhi em conversas com mais de 20 mulheres 60+. A estética da peça faz um convite à total proximidade com os espectadores, que em alguns momentos são convidados a contar algo da sua história. Nela compreendi que no teatro é possível quebrar a barreira palco e plateia com delicadeza, sem invadir o espaço do espectador. Um portão que se abre – assim como o portão lá de Atenas –, e que se abriu a cada noite dos três meses de temporada no teatro Poeirinha, no Rio de Janeiro.
O encontro com as espectadoras e espectadores é nessa peça uma fonte impulsionadora de voos cegos. Essa peculiaridade da arte teatral me pede escuta e atenção, pois algo se renova a cada espetáculo. A abertura para o jogo com quem estava lá a cada noite para assistir foi me fazendo, ao longo da temporada, ter cada vez mais vontade de não esconder as contradições e confiar na teimosia do desejo e no teatro.
Ainda hoje, a cada nova personagem que vou viver, a cada ator que entra no studio para estudarmos um papel ou a cada obra que vou dirigir, me pergunto quais os muros terei que pular, quais os portões precisarão ser abertos, por mim e pelo outro, para encontrar esse espaço livre da criação.

Algumas vezes esses portões são abertos pelo mergulho na história de vida de alguém. Como, por exemplo, a vida de Ângela Diniz, processo de criação que vivi preparando Marjorie Estiano para a série “Praia dos Ossos”, dirigida por Andrucha Waddington, que
será lançada este ano. Através da Ângela, Marjorie, que é uma atriz extremamente dedicada ao seu ofício, expandiu seu trabalho e viveu um processo muito meticuloso para dar vida a essa mulher extremamente sedutora e sexy. Ângela Diniz nos fez refletir
profundamente sobre os riscos de ser uma mulher que luta por sua liberdade. Foi uma jornada muito instigante que trouxe para Marjorie um novo olhar sobre a vida, sobre ela como mulher e atriz e sobre como o mundo é, ainda hoje, extremamente patriarcal. Inúmeras fotografias de Ângela Diniz espalhadas pelo chão do studio, uma trilha sonora escolhida por nós e muitas horas, mas muitas horas mesmo, criando uma fisicalidade outra. Como Marjorie, agora Ângela, se move? Improvisos de situações que sequer estavam no roteiro para abrir a compreensão holística sobre a personagem. Como, por exemplo, beber uma dose de whisky sozinha em seu novo apartamento ao chegar, recém-desquitada, no Rio de Janeiro. Buscamos, através destas artesanias, compreender como pensava, como lutava pelo amor da sua filha e como se comportava essa mulher vítima da opressão e violência masculina que ainda persiste.
O mergulho no roteiro de “O Quarto de Despejo”, a partir do livro de Carolina Maria de Jesus, feito por Maria Gal, também é uma parceria na preparação de uma atriz que, além de atuar, criou uma produtora para poder realizar o filme. Quando chegou em São Paulo, vinda de Salvador, a atriz encontrou o livro em um sebo e desde então seu imaginário foi tomado pela possibilidade de viver na própria pele os caminhos de Carolina. Maria também lidou com muitos obstáculos para realização do filme que será rodado esse ano com direção de Jeferson De. Entretanto, um estímulo muito especial se deu quando, anos atrás, ouviu de um diretor depois de ser quase escalada para uma personagem: a sua cor não é comercial. Nesse momento, Maria conta que entendeu que se quisesse fazer um papel protagonista teria que produzir o seu trabalho. A sua solução pessoal, penso eu, está ligada à coragem de criar uma produção inteira para fazer um papel que acompanha seu imaginário há tantos anos. Vejo a potência da sua entrega desde os primeiros momentos da preparação para sua criação de Carolina.
Quando Fernanda Torres me procurou, ainda antes da primeira leitura do roteiro de “Ainda estou aqui” com a direção e elenco, ela me trouxe dois pontos iniciais. O primeiro foi que estava há muitos anos fazendo papéis cômicos e o segundo, que sua mãe, a atriz Fernanda Montenegro, disse a ela: “Nanda, se você vai fazer uma tragédia, você não pode chorar na primeira dificuldade da personagem.” Portanto: uma atriz que vinha de anos fazendo personagens cômicas com necessidade de se preparar para uma personagem trágica. Entretanto, o que, provavelmente, Fernanda traz consigo de todos esses anos na comédia é uma enorme disponibilidade, inteligência, rapidez de raciocínio e habilidade de entrega. Reconhecer isso foi meu ponto de partida. O que ela via como dificuldade, para mim, foi uma sinalização de caminho. Eu propunha para ela situações de Eunice Paiva que estavam no livro de Marcelo Rubens Paiva e Fernanda habitava essas situações, deixando-se levar no aqui agora. Sugeri a ela uma improvisação em que dava instruções para a funcionária da casa e ela entrava na situação concentrada e disponível. Com isso, trabalhávamos a vida íntima dessa mulher que seria abatida por uma tragédia. Precisávamos saber quem era Eunice antes da falta se instalar na sua vida; ela precisava conhecer no próprio corpo a vida sem dor para poder instalar a dor e depois dar um caminho de contenção a essa dor. A Solução Pessoal de Fernanda estava justamente no que ela imaginava que não tinha, mas que estava latente à espera de uma personagem complexa e forte como Eunice.

Na arte do ator, viver uma personagem, real ou ficcional, é, no meu ponto de vista, sempre uma criação. Como nos ensina Manoel de Barros quando diz: “tudo que não invento é falso”. Penso que é na invenção de um mundo possível que reside a solução pessoal. Talvez isso esteja ligado à nossa coragem para associar vulnerabilidade e força numa situação de tanto risco, como é a cena teatral ou um set de filmagem. Talvez, também, a Solução Pessoal possa estar conectada com o nosso desejo para desenvolver um amor pelo risco e pela impermanência.
Em alguma medida, objetiva ou subjetiva, mesmo trabalhando como atriz, professora ou diretora há quase 40 anos, a arte continua me exigindo coragem para transgredir, desobedecer e pular muros. De alguma maneira, enfrentar os obstáculos externos ou internos para seguir criando soluções pessoais. As dúvidas sobre nossa potência estão sempre à espreita. Posso pular esse muro? Vou ser capaz de viver/criar essa personagem? Quais os desafios que vou encontrar nesse processo específico? Entretanto, sempre se renova em mim o sentimento de que é depois de algum tipo de transgressão muito singular que começamos a encontrar uma espécie de liberdade possível para criar nossas obras e nossas personagens. É no nosso corpo de atrizes e atores que vai nascer um comportamento outro. Não mais o nosso, mas ainda assim, de alguma maneira, nosso. É na maneira singular como cada ator se apropria do material humano que o habita que ele constrói a sua Solução Pessoal.
Helena Varvaki é atriz, diretora de atores e professora de atuação.